quarta-feira, 19 de maio de 2010

Os Ombros Suportam o Mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos
tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres
batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na
sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes
sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice,
que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a
mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida
é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Carlos Drummond de Andrade

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