quarta-feira, 13 de maio de 2015

Ensinar a raciocinar

Entrevista com CONSTANCE KAMII










Nascida na Suíça, filha de mãe americana e pai japonês, a educadora Constance Kamii é uma referência mundial no ensino da matemática. Aluna e colaboradora de Jean Piaget, e atualmente professora da Universidade do Alabama, nos Estados Unidos, ela concedeu esta entrevista à Pátio Educação Infantil por e-mail. Abordando o ensino da matemática para crianças pequenas, Kamii afirma: “Professores que desejam desenvolver o conhecimento lógico-matemático de suas crianças precisam entender não apenas a teoria de Piaget, mas também as evidências científicas que dão base a essa teoria”.

Estes e outros conceitos estão na base de sua extensa obra, da qual a Artmed publicou no Brasil Jogos em grupo na educação infantil: implicações na teoria de Piaget, em coautoria com Rheta DeVries, e Crianças pequenas continuam reinventando a aritmética (séries iniciais): implicações da teoria de Piaget, com Linda Leslie Joseph.
Qual é o lugar da matemática no currículo da educação infantil?
Quando professores da pré-escola tentam ensinar matemática, costumam utilizar materiais especiais, como fichas, varetas, cilindros ou o material dourado, recomendado por Montessori. Esses materiais expressam tentativas de ensinar matemática como uma disciplina específica, em vez de aproveitar o contexto em atividades mais naturais, como pintura, brincadeiras de faz de conta, criação de plantas ou animais. Acredito que as atividades naturais sejam mais interessantes e absorventes para crianças pequenas do que as artificiais, desenvolvidas especificamente para o ensino da matemática. Entre 3 e 6 anos, o pensamento das crianças ainda não diferencia áreas ou disciplinas acadêmicas, como matemática, literatura, ciências e artes. Para a construção do seu conhecimento lógico-matemático, raciocinar é o que realmente importa. Como afirma Piaget (Piaget e Garcia, 1971), “a criança pode, sem dúvida, se interessar em seriar por seriar ou em classificar simplesmente por classificar quando uma ocasião lhe é apresentada. Contudo, de modo mais global, é quando precisa explicar eventos ou fenômenos, ou alcançar objetivos em uma situação intrigante, que as operações são mais exercitadas” (p. 26).

Segundo o referencial teórico de Piaget, qual a relação e a diferenciação entre os tipos de conhecimento por ele explicitados?
Piaget estabeleceu uma distinção fundamental entre três tipos de conhecimento, de acordo com suas fontes principais: conhecimento físico, lógico-matemático e social-convencional. Conhecimento físico é o conhecimento dos objetos no mundo exterior. Saber que a tinta é líquida quando pintamos, mas depois seca, ou que bolinhas de gude rolam, mas blocos não, também são exemplos desse tipo de conhecimento. A fonte principal do conhecimento físico são os objetos do mundo exterior. Exemplos de conhecimento social-convencional são as línguas, como o português e o inglês, assim como o fato de o dia 25 de dezembro ser um feriado chamado Natal. A fonte principal desse tipo de conhecimento são as convenções criadas pelas pessoas.
Enquanto o conhecimento físico e social-convencional tem suas fontes no mundo externo, o conhecimento lógico-matemático consiste em relações mentais que são construídas internamente por cada pessoa. Se nos são mostrados dois blocos pequenos idênticos, exceto por um ser vermelho e o outro azul, podemos dizer que os dois são diferentes. Da mesma forma, podemos dizer que eles são semelhantes ou ainda fazer uma terceira relação, dizendo que são dois. “Diferentes”, “semelhantes” e “dois” são exemplos de relações lógico-matemáticas construídas na mente de cada pessoa. O bloco vermelho pode ser observado (conhecimento físico). O mesmo acontece com o bloco azul, mas a diferença entre eles não tem existência em lugar nenhum do mundo exterior nem é observável. A diferença é uma relação mental, criada por cada indivíduo, que os vê como sendo diferentes. A semelhança entre eles também é uma relação mental, criada por cada um, que os vê como sendo semelhantes. O mesmo vale para a relação “dois”, que é construída por cada um, que vê os blocos como sendo “dois”.

A singularidade da teoria de Piaget encontra-se no que ele definiu como conhecimento lógico-matemático. Um educador que entende a natureza desse tipo de conhecimento não ensina matemática tal como um professor tradicional o faz. Tomemos como exemplo a prova de conservação do número para deixar clara a natureza lógico-matemática dos números. Nessa prova, o adulto primeiro constrói uma fileira com oito fichas, como a que segue:
o   o   o   o   o   o   o   o 

Depois ele pede à criança para colocar o mesmo número de fichas de outra cor. Muitas crianças de 4 anos conseguem fazer a correspondência termo a termo e colocar o mesmo número de fichas. Assim:
o   o   o   o   o   o   o   o (branco, por exemplo);
x   x   x   x   x   x   x   x (amarelo, por exemplo).

Então o adulto diz à criança: “Preste bastante atenção no que eu vou fazer”, enquanto aumenta o espaço entre as fichas de uma das fileiras e junta as fichas da outra cor, como mostrado abaixo, perguntando a ela: “E agora? Há o mesmo número nas duas fileiras, ou há mais fichas nesta fileira (branca) ou nesta (amarela)?”.
o     o     o     o     o     o     o     o  (branco);
x x x x x x x x (amarelo).

Até os 5 ou 6 anos, as crianças geralmente respondem que há mais fichas brancas e justificam dizendo que a fileira branca é mais comprida. Essa prova ilustra a relação entre o conhecimento físico da criança sobre as fichas, que são observáveis, e o conhecimento lógico-matemático dos números, que não é observável. Quando ainda não construíram o conhecimento lógico-matemático dos números, elas dizem que há mais fichas brancas do que amarelas porque elas enxergam as fichas brancas ocupando mais espaço. Em contrapartida, quando já construíram esse conhecimento, elas se tornam aptas a raciocinar de forma lógico-matemática, dizendo que ainda deve ter tantas fichas amarelas quanto brancas. Sobre essas crianças, dizemos que conservam o número.

Há muitos professores de educação infantil que acreditam que conceitos numéricos podem ser adquiridos diretamente de objetos, como blocos ou fichas, lançando mão de “materiais concretos” (manipuláveis) para ensiná-los. Contudo, os números fazem parte do conhecimento lógico-matemático, e é impossível construir esse tipo de conhecimento a partir de objetos. A ideia de número só pode ser construída por meio do raciocínio. Por esse motivo, enfatizei o raciocínio da criança quando respondi à primeira pergunta.

Qual é a importância de se realizar atividades com o chamado conhecimento físico na escola de educação infantil?
De modo geral, atividades de conhecimento físico são aquelas em que a criança age sobre os objetos, tentando produzir neles certo efeito. Um exemplo é o jenga (figura). Nesse jogo, as crianças constroem uma torre e vão retirando um bloco de cada vez, tentando conseguir mais blocos que as outras. Quem fizer a torre cair perde o jogo.

Jenga é uma boa atividade de conhecimento físico para o desenvolvimento do conhecimento lógico-matemático das crianças, porque elas precisam concentrar-se e pensar muito enquanto jogam. Primeiro, têm de decidir se irão retirar um bloco do topo da torre, do meio ou da base. Depois de escolher a camada e a altura em especial, a criança precisa decidir qual dos três blocos daquela camada tentará retirar.

Crianças avançadas em termos lógico-matemáticos retiram um dos blocos de fora. 
Crianças menos avançadasResultado de imagem para jenga retiram qualquer um dos três blocos aleatoriamente. As crianças mais avançadas justificam ter retirado um bloco de fora dizendo: “Se eu tirar um bloco que está na ponta, mais tarde poderei tirar o que está na outra ponta, mas se eu retirar o bloco do meio, não poderei tirar nenhum dos dois que estão nas pontas”. Resumindo, atividades de conhecimento físico são importantes porque estimulam a criança a pensar, permitindo-lhe ter êxito ou não. Se a torre cair, a criança é motivada a descobrir o que pode fazer da próxima vez para ter mais êxito.

Quais atividades propostas às crianças na educação infantil são especialmente importantes para a construção do número?
Segundo Piaget, conceitos numéricos resultam de dois tipos de relações mentais lógico-matemáticas que são elaboradas pela criança: inclusão hierárquica e ordem. A ausência da noção de inclusão hierárquica pode ser observada na seguinte situação: o adulto organiza cinco fichas em fila e pergunta à criança quantas fichas existem ali. A maioria das crianças de 4 anos é capaz de contar as fichas e dizer que são cinco. Se o adulto pedir para a criança “mostrar as cinco”, a maioria delas aponta para a quinta ficha e diz “é esta aqui”.

Essa resposta mostra que, para a maioria das crianças de 4 anos, as palavras “um, dois, três…” funcionam como os nomes dos dias da semana. Quando elas dizem “um”, esta palavra indica, para elas, a primeira ficha. Quando dizem “dois”, indica a segunda ficha, e assim por diante. Resumindo, “um, dois, três…” funcionam para elas como “segunda, terça, quarta…”. Mais tarde, quando constroem conceitos numéricos, por volta de 5 e 6 anos, elas começam a incluir mentalmente o “um” no “dois”, o “dois” no “três”, o “três” no “quatro”, e assim por diante.

A ausência da noção de ordem pode ser observada quando espalhamos cinco fichas sobre a mesa e pedimos para uma criança de 4 anos contá-las. Crianças dessa idade costumam contar a mesma ficha mais de uma vez ou então pulam alguma. Porém, quando já construíram conceitos numéricos, elas colocam mentalmente as fichas em uma relação ordenada e sabem exatamente quais já foram contadas e quais ainda precisam ser.

Alguns professores tentam ensinar o comportamento correto, ajudando a criança a contar para que produza a resposta certa. No entanto, relações mentais lógico-matemáticas não podem ser ensinadas de fora para dentro. As palavras “um”, “dois” e “três” podem ser ensinadas, porque elas fazem parte do conhecimento social-convencional, mas o mesmo não acontece com as relações mentais lógico-matemáticas sobre “um”, “dois” e “três”. Os adultos podem estimular a criança a pensar, incentivando-a a construir as noções de inclusão hierárquica e ordem, mas não é possível ensiná-las diretamente a criar essas relações mentais.

As crianças podem ser estimuladas tanto a pensar quanto a não pensar durante todo o dia, sem necessidade de nenhum tipo específico de atividade. Por exemplo, quando duas crianças estão brigando por um brinquedo, muitos professores resolvem o problema por elas dizendo: “Vou cronometrar cinco minutos, enquanto uma de vocês brinca com o brinquedo, e depois a outra pode brincar por mais cinco minutos”. Um professor que compreende a importância de estimular o raciocínio dirá: “Não sei como resolver o problema, mas acho que vocês podem conversar e tomar uma decisão. Vou deixar o brinquedo nessa prateleira enquanto vocês discutem uma possível solução e, quando chegarem a uma decisão, quero que me digam. Então vou devolvê-lo a vocês”.

Em geral, crianças de 4 anos voltam radiantes e dizem: “Decidimos que nenhum de nós vai brincar com o brinquedo”. Elas pensaram sobre todas as quatro possibilidades lógicas, a saber: (a) ambas partilham o brinquedo; (b) a criança A brinca com ele; (c) a criança B brinca com ele e (d) ninguém usa o brinquedo. Dessa forma, elas decidem que a melhor escolha é a (d). Para chegar a essa conclusão, precisam pensar muito, e esse processo de raciocínio contribui para a construção de relações lógico-matemáticas.

Na educação, há uma tendência a pensar que, se queremos que a criança saiba “isso”, devemos ensinar “isso”; se queremos que ela saiba “aquilo”, devemos ensinar “aquilo”. Todavia, há uma grande quantidade de evidências experimentais nas pesquisas de Piaget que mostram que, no domínio do conhecimento lógico-matemático, as crianças progridem em áreas que não foram ensinadas pelo professor. Por exemplo, Inhelder, Sinclair e Bovet (1974) demonstraram que muitas crianças pré-operatórias tiveram progresso na conservação, enquanto o pensamento classificatório estava sendo estimulado.

Concluindo, é melhor não tentar ensinar conceitos numéricos por meio desta ou daquela atividade específica. Crianças que são incentivadas a raciocinar durante todo o tempo são mais suscetíveis a construir conceitos numéricos do que aquelas às quais esses conceitos são ensinados estreitamente e especificamente em momentos determinados.

Que princípios são importantes na formação do educador infantil?
Defendo dois princípios de ensino, com vistas a estimular a criança a raciocinar: (1) não sugerir a ela como ter êxito em um nível mais elevado do que está; (2) elogiá-la somente quando o seu esforço realmente vale um elogio.

Quando uma criança está jogando jenga, por exemplo, e só retira os pauzinhos que estão no meio das fileiras, os professores tradicionais sugerem que será mais vantajoso retirar os pauzinhos que estão nas pontas. Esse tipo de conselho pode produzir comportamentos de nível mais elevado, porém a criança é privada da oportunidade de pensar. O objetivo de qualquer atividade é incentivá-la a raciocinar e construir o seu conhecimento lógico-matemático. Privando as crianças de raciocinar, estamos tirando delas a possibilidade de se desenvolver lógico-matematicamente.

Muitos professores tradicionais nos Estados Unidos dizem “Bom trabalho!” em qualquer situação na qual as crianças se comportem de maneira desejável. Quando elas obtêm êxito no jenga, por exemplo, já sabem que estão tendo sucesso. Elogiá-las só serve para torná-las dependentes dos elogios, e já temos crianças demais precisando do chamado “reforço positivo” no behaviorismo. Esses são princípios muito diferentes dos que comumente são ensinados aos professores.

Portanto, é importante que eles entendam as razões teóricas para esses princípios. Educadores tradicionais da educação infantil não sabem nada sobre conhecimento lógico-matemático. Então, professores que desejam desenvolver o conhecimento lógico-matemático de suas crianças precisam entender não apenas a teoria de Piaget, mas também as evidências científicas que servem de base a essa teoria. Sua teoria é fundamentalmente diferente do empirismo e do behaviorismo, nos quais se baseia a educação tradicional.

REFERÊNCIAS

  • INHELDER, B.; SINCLAIR, H.; BOVET, M. Apprentissage et structures de la connaissance. Paris: PUF, 1974.

    PIAGET, J.; GARCIA, R. Les explications causales. Paris: PUF, 1971.

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